sábado, 17 de março de 2012

Do Belo: uma leitura comparativa

Me permitam reelaborar o que disse Vinicius de Morais quando disse "beleza é fundamental". Fosse um grego do período arcaico ou clássico acrescentaria: 'nem basta ser bonito, tem que ser bom e virtuoso'. A questão que me proponho a discutir nesse breve texto é justamente esse aspecto muito inerente à cultura grega mas que também é visível e substancialmente presente em outras expressões religiosas - antigas ou mais recentes: o belo.

Para os gregos, o belo, ou Kalós (καλός; f. καλή, kalé) era um dos pilares sobre os quais se organizava a cidade e pelos quais se pretendia formar o homem, junto com a areté (excelência, virtude) e ao agathos (ser bom, ser de bem). Mas afinal, o que é o belo?

Podemos dizer que havia entre os gregos uma distinção entre o belo e  o esteticamente agradável, a tal ponto que as palavras que designavam a arte, (techné) e que designava o belo (kalós) serem  de origem distintas. Todavia, como é de se imaginar ao observar todo o espólio grego para o mundo ocidental, esses são aspectos interdependentes. Para os gregos a questão estava no fato de que o kalós ser mais que uma normatização da beleza, era um valor moral, cívico. O homem belo era aquele que executava os bons atos, que equilibrava em si uma aparência agradável e valores morais fundamentais; talvez possamos dizer do homem belo que seja o homem temperado, ao que os escritores da antiguidade clássica chamavam kalos kagatos: bom e belo a que me referi há pouco. 

A arte grega, como disse, apesar da distinção de parâmetros, estabelece vínculos constantes com a moral, possivelmente como um marcador social e cultural, uma forma de educar a população como o eram o teatro e o mito, por exemplo. Em uma das passagens mais significativas da mitologia mas também da arte grega quando Athena segura o céu para Hérakles na ocasião de cumprir os doze trabalhos que lhe foram designados, pode-se ver a placidez e leveza com que Ela, a deusa, ajuda o herói no cumprimento de seus deveres. Uma mensagem aos cidadãos gregos de que os deuses ajudam aqueles que são dignos e valentes? Sim!

Mas como disse, o propósito deste texto é fazer um passeio comparativo sobre como esses valores do kalós estão presentes também em outras expressões religiosas. Pois bem, comecemos pela Índia com o Budismo e o Hinduísmo

Como uma das religiões mais antigas do mundo, o hinduísmo compartilha muitas semelhanças com o culto helênico. São várias as razões para isto: o tronco-comum, indo-europeu; ou talvez a proximidade histórica durante o período das invasões alexandrinas, além do próprio aspecto viajante do povo grego, sempre em trânsito pelo mundo antigo. Para os hindus, em especial aqueles que tem o hinduísmo como opção e orientação religiosa, o belo é uma característica imanente aos deuses, que criam entre os homens um aspecto de distinção. O mundo budista, em sua simplicidade e complexidade, após chegar ao Japão, como esclarece o monge Ricardo Mario Gonçalves, estabelece uma série de princípios e conceitos que exemplificam a preocupação e o impasse do homem entre o belo e o efêmero. Alguns irão lembrar do dilema do Petit Prince, o Pequeno Príncipe tão conhecido por nós e que exemplifica o ideal do wabi sabi do budismo japonês. A visão japonesa do belo por meio do wabi sabi mostra que a beleza é justamente a fusão daquilo que é simultaneamente impermanente e vazio. Aspectos que apesar da aparente distância, no plano do real e das ideias estão mais conectados do que suporíamos. 

Cabe aqui algumas considerações. Entre o mundo grego e o mundo japonês na forma do budismo, vemos que a beleza é resultado de um estado de tensão, que no entanto são advindas de formas distintas. A tensão grega é dada pelo movimento de confronto, de oposições: o agon. No mundo japonês a tensão é o impasse, a busca pela contemplação, sem que haja necessariamente a busca desse aspecto (pró-)ativo que é presente ao mundo grego. Semelhante acontece em relação ao hinduísmo.

Além do Wabi, outros conceitos estéticos e morais foram elaborados pelo mundo budista - que serão apenas citados: Yugen e Sabi. Esses valores, assim como no mundo grego estão em íntima relação com o mundo da arte, a techné e a estética. 

Os mundos que existem na África também se aproximam quando o aspecto é a beleza. Nas religiões tradicionais nigerianas da qual o candomblé é herdeiro, os orixás são distinguidos não apenas pela porção do mundo natural a que são responsáveis, mas também pelo que há de belo ou puro em si: o feio ou sujo é escondido (não apenas o belo estético, mas também o belo das ações morais). Obaluaê, ou Omulu, exemplifica esta questão:  filho de Nanã, ele é rejeitado e jogado à terra. onde é cuidado por Iemanjá. Semelhanças podemos ver com o mito de Hefesto: filho de Hera ele é lançado do Olimpo para a terra, onde é cuidado por Tétis a nereida. Assim como Hefesto, Obaluaê é o senhor das técnicas. Ao passo que Hefesto é o ferreiro, senhor das tecnologias., Obaluaê é o senhor das curas, rei da terra. Cabe aqui notar como ambos os mitos-cultos, convergem par a arte: a arte, arte como domínio da dor e da técnica. 

As demonstrações aqui apontadas são feitas de modo a expor um pequeno panorama. Gostaria de finalizar com uma pequena observação. Assim como afirmei algumas vezes ao longo deste texto, belo e estético convergem de modo que por vezes é impossível diferenciá-los ou separá-los, coisa que precisa ser feita. O belo assume várias formas, inclusive a do grotesco. O belo é a harmonia moral; o equilíbrio. É o que vemos na lição dada pelo deuses a Laocoonte, nas mulheres de Modigliani, no ponto disforme e reformulador de Matisse ou no dilaceramento do Picasso. Gostaria de dizer que o bonito enquanto manifestação do estético não manifesta-se da mesma forma em todos os povos ou culturas. É o azul dos deuses hindus, o minimalismo japonês, o vigor nórdico... é preciso estar atento e saber receber a essas formas de belo, de virtude e de estética, pois não basta ser bom, é preciso ter em si o belo. Onde ele está? Nas ações, certamente.

Estó!

domingo, 11 de março de 2012

Kalós [vídeo] + [ensaio]

O segundo tema que os nossos exegetas estudaram foi "kalós", comumente traduzido por "o belo" – desde que não limitado a seu uso puramente estético. Desta vez, não teremos um ensaio, visto que o texto do vídeo já ficou grande o suficiente para explicar o tema. Esse vídeo foi uma súmula das nossas pesquisas e reflexões, e está no nosso canal do youtube, com texto/edição da Alexandra Nikasios e narração do Jota Aktaios. Agora você pode vê-lo aqui:




Se você quiser saber mais sobre Kalós, aguarde a próxima postagem do Thiago com religião comparada. Recomendamos especialmente trechos de "A República" de Platão; "O Banquete" de Platão"; "Arte Poética" de Aristóteles; "5ª Enéada" de Plotino; "Kalos Kai Agathos: Homeric Origins" de Thomas Brian Mooney; e "Plotino: uma perspectiva neoplatônica da estética" de Bento Silva Santos.

Segue abaixo o texto utilizado no vídeo:
Para os antigos helenos, um bom cidadão deveria ser "kalós kai agathós". Esse agathós originalmente tinha um sentido de nobre, valente, hábil, virtuoso - quase como um adjetivo de areté; mas, com o tempo, foi adquirindo o sentido de bom'. Assim como traduzimos areté por virtude sem conotações morais, também traduzimos agathós sem conotações éticas ou estéticas. Agathós está ligado à realização de uma função. Exercer sua função social faz o indivíduo ter areté/virtude e ser agathós/virtuoso(bom). Ser agathós é ser majestoso, corajoso, esperto, habilidoso. Platão imaginava a kalokagathia como a soma de todas as virtudes. Aristóteles a via como uma alta capacidade intelectual subsidiada pela aquisição da areté, ou seja, viver suas potencialidades e ser virtuoso tanto no espírito quanto no corpo. Ser belo e bom.
Mas o que é belo? Kalós é o adjetivo para 'belo', usado tanto para seres animados quanto inanimados. Ser belo não é só ser proporcional, saudável, forte. Tem a ver, sim, com uma prática, uma técnica. Kalós vem de kaleo (chamar), pois é aquilo que nos chama, que nos atrai. É belo quem adequa as coisas humanas ao pensamento divino. 
Quando Homero descreve os navios, armaduras e armas, ele o faz para demonstrar a excelência dos objetos através da sua beleza: um navio de madeira bem modelada, uma armadura brilhante, uma lança bem reta e afiada. Sendo moldados em belas formas, seguindo os padrões da natureza, refletindo o melhor que a paciência e habilidade artística gregas podem produzir, esses objetos executam sua função, seu propósito, com excelência. Eles tinham valor. E eles reproduziam o valor dos seus construtores.
Para Platão, as representações materiais do belo compartilhavam da Beleza Absoluta/Universal, aquela do mundo das idéias, desprovida de relatividade. E, se o belo revela o Ser e não é relativo, então a Verdade seria uma garantia da Beleza. O Bem seria a origem de tudo o que é reto/justo e belo. Platão pede que o filósofo se eleve até a Beleza em si, diz que é Éros quem nos conduz à Beleza, e afirma que devemos melhorar o mais possível a alma, pois as virtudes e todos os outros bens particulares e públicos provém disso, e não o contrário, como pensam os que cuidam com mais afinco do corpo.
Já para Aristóteles, o belo não se dava por uma relação com o Ser e a Verdade, mas com a perfeição das formas. Ou seja, era algo definido, simétrico, ordenado, proporcional, harmônico, equilibrado, de justa medida (métron), e não algo metafísico. E isso não teria relação direta com a arte, já que algo feio e estranho poderia ser fruto de criação artística. A arte, para ele, podia ser tanto útil (a que proporciona catarse e completa uma falta) quanto imitativa da natureza, mas ela poderia trazer também coisas surpreendentes e estranhas.
Para Plotino, existia a beleza dos corpos, a Beleza das almas e a Beleza eterna, sendo esta última idêntica ao Espírito (noûs) e ao Ser -- o que nos lembra novamente a visão metafísica de Platão. A beleza se refletiria na arte porque proviria da forma que está no intelecto do artista (que ele resgata em sua visão daquilo que conhece) e não do seu fazer manual, sua habilidade prática. Não era uma questão de simetria, como em Aristóteles, e sim um valor associado a uma harmonia de revelação metafísica. A Alma só é bela pela Inteligência, e as outras coisas só são belas pela Alma que lhes dá a forma. 
Por essas questões do belo como possuidor do valor da harmonia e do belo como reflexo de algo metafísico é que cabe discutirmos o kalós dentro da religião. Kalós como adjetivo de Areté, a excelência, nos lembra que um mundo excelente é aquele que possui ordem (cosmos) e beleza.
Que tal agora refletir sobre o que você tem feito para espelhar 'o bom, o belo e o verdadeiro' no mundo?