Me permitam reelaborar o que disse Vinicius de Morais quando disse "beleza é fundamental". Fosse um grego do período arcaico ou clássico acrescentaria: 'nem basta ser bonito, tem que ser bom e virtuoso'. A questão que me proponho a discutir nesse breve texto é justamente esse aspecto muito inerente à cultura grega mas que também é visível e substancialmente presente em outras expressões religiosas - antigas ou mais recentes: o belo.
Para os gregos, o belo, ou Kalós (καλός; f. καλή, kalé) era um dos pilares sobre os quais se organizava a cidade e pelos quais se pretendia formar o homem, junto com a areté (excelência, virtude) e ao agathos (ser bom, ser de bem). Mas afinal, o que é o belo?
Podemos dizer que havia entre os gregos uma distinção entre o belo e o esteticamente agradável, a tal ponto que as palavras que designavam a arte, (techné) e que designava o belo (kalós) serem de origem distintas. Todavia, como é de se imaginar ao observar todo o espólio grego para o mundo ocidental, esses são aspectos interdependentes. Para os gregos a questão estava no fato de que o kalós ser mais que uma normatização da beleza, era um valor moral, cívico. O homem belo era aquele que executava os bons atos, que equilibrava em si uma aparência agradável e valores morais fundamentais; talvez possamos dizer do homem belo que seja o homem temperado, ao que os escritores da antiguidade clássica chamavam kalos kagatos: bom e belo a que me referi há pouco.
A arte grega, como disse, apesar da distinção de parâmetros, estabelece vínculos constantes com a moral, possivelmente como um marcador social e cultural, uma forma de educar a população como o eram o teatro e o mito, por exemplo. Em uma das passagens mais significativas da mitologia mas também da arte grega quando Athena segura o céu para Hérakles na ocasião de cumprir os doze trabalhos que lhe foram designados, pode-se ver a placidez e leveza com que Ela, a deusa, ajuda o herói no cumprimento de seus deveres. Uma mensagem aos cidadãos gregos de que os deuses ajudam aqueles que são dignos e valentes? Sim!
Mas como disse, o propósito deste texto é fazer um passeio comparativo sobre como esses valores do kalós estão presentes também em outras expressões religiosas. Pois bem, comecemos pela Índia com o Budismo e o Hinduísmo.
Como uma das religiões mais antigas do mundo, o hinduísmo compartilha muitas semelhanças com o culto helênico. São várias as razões para isto: o tronco-comum, indo-europeu; ou talvez a proximidade histórica durante o período das invasões alexandrinas, além do próprio aspecto viajante do povo grego, sempre em trânsito pelo mundo antigo. Para os hindus, em especial aqueles que tem o hinduísmo como opção e orientação religiosa, o belo é uma característica imanente aos deuses, que criam entre os homens um aspecto de distinção. O mundo budista, em sua simplicidade e complexidade, após chegar ao Japão, como esclarece o monge Ricardo Mario Gonçalves, estabelece uma série de princípios e conceitos que exemplificam a preocupação e o impasse do homem entre o belo e o efêmero. Alguns irão lembrar do dilema do Petit Prince, o Pequeno Príncipe tão conhecido por nós e que exemplifica o ideal do wabi sabi do budismo japonês. A visão japonesa do belo por meio do wabi sabi mostra que a beleza é justamente a fusão daquilo que é simultaneamente impermanente e vazio. Aspectos que apesar da aparente distância, no plano do real e das ideias estão mais conectados do que suporíamos.
Cabe aqui algumas considerações. Entre o mundo grego e o mundo japonês na forma do budismo, vemos que a beleza é resultado de um estado de tensão, que no entanto são advindas de formas distintas. A tensão grega é dada pelo movimento de confronto, de oposições: o agon. No mundo japonês a tensão é o impasse, a busca pela contemplação, sem que haja necessariamente a busca desse aspecto (pró-)ativo que é presente ao mundo grego. Semelhante acontece em relação ao hinduísmo.
Além do Wabi, outros conceitos estéticos e morais foram elaborados pelo mundo budista - que serão apenas citados: Yugen e Sabi. Esses valores, assim como no mundo grego estão em íntima relação com o mundo da arte, a techné e a estética.
Os mundos que existem na África também se aproximam quando o aspecto é a beleza. Nas religiões tradicionais nigerianas da qual o candomblé é herdeiro, os orixás são distinguidos não apenas pela porção do mundo natural a que são responsáveis, mas também pelo que há de belo ou puro em si: o feio ou sujo é escondido (não apenas o belo estético, mas também o belo das ações morais). Obaluaê, ou Omulu, exemplifica esta questão: filho de Nanã, ele é rejeitado e jogado à terra. onde é cuidado por Iemanjá. Semelhanças podemos ver com o mito de Hefesto: filho de Hera ele é lançado do Olimpo para a terra, onde é cuidado por Tétis a nereida. Assim como Hefesto, Obaluaê é o senhor das técnicas. Ao passo que Hefesto é o ferreiro, senhor das tecnologias., Obaluaê é o senhor das curas, rei da terra. Cabe aqui notar como ambos os mitos-cultos, convergem par a arte: a arte, arte como domínio da dor e da técnica.
As demonstrações aqui apontadas são feitas de modo a expor um pequeno panorama. Gostaria de finalizar com uma pequena observação. Assim como afirmei algumas vezes ao longo deste texto, belo e estético convergem de modo que por vezes é impossível diferenciá-los ou separá-los, coisa que precisa ser feita. O belo assume várias formas, inclusive a do grotesco. O belo é a harmonia moral; o equilíbrio. É o que vemos na lição dada pelo deuses a Laocoonte, nas mulheres de Modigliani, no ponto disforme e reformulador de Matisse ou no dilaceramento do Picasso. Gostaria de dizer que o bonito enquanto manifestação do estético não manifesta-se da mesma forma em todos os povos ou culturas. É o azul dos deuses hindus, o minimalismo japonês, o vigor nórdico... é preciso estar atento e saber receber a essas formas de belo, de virtude e de estética, pois não basta ser bom, é preciso ter em si o belo. Onde ele está? Nas ações, certamente.
Estó!